17 de maio a 1º de julho, no Centro Cultural do Ministério Público
Inspirada no mito Yorubá de Obaluaiê, a exposição é uma instalação composta de pinturas e esculturas. Nela é feita uma correlação entre rejeição e acolhimento, vividas pelo Orixá, e as mazelas enfrentadas pela humanidade nos dias de hoje, em questões como gênero, orientação sexual e etnia. No mito, os problemas são, metaforicamente, convertidos em superação quando a divindade transforma suas feridas em pipocas: as “Flores de Obaluaiê”.
A instalação Flores de Obaluaiê
A concepção artística da instalação, composta por dezenove obras em diferentes suportes, divididas em dois ambientes, é motivada pela questão social que envolve a violência que sofre a população LGBTI+ e outras minorias, discriminadas por não corresponderem ao padrão consensual estabelecido pela sociedade, ainda em grande medida racista, patriarcal e homofóbica.
As angústias e transtornos sofridos por esta população são, muitas vezes, contidos, sufocados e reprimidos voluntariamente e, para evitar consequências como agressões e homicídios, os indivíduos acuados passam a viver em terríveis claustros emocionais e psicológicos, que podem evoluir para transtornos da saúde e culminar em suicídios.
Popularmente e de forma pejorativa, estes “comportamentos” geraram uma espécie de “bordão” metafórico, se referindo aos recolhimentos íntimos destes sofrimentos e conflitos, o “escondido no armário”. Estas angústias, por vezes, transcendem a questão da sexualidade e passam a envolver aspectos como gênero, pobreza, etnia, aparência física, escolarização e religião.
O viés escolhido para a ambientação da instalação foi o bordão já citado e a disposição das obras está dentro de uma estilização ou ressignificação de armários feitos em madeira de pinus. A construção visual se alicerçou também na Semiótica, buscando formas, cores, signos, ou códigos nacionais e internacionais, que representam algumas das populações inspiradoras desta obra, com a intenção de criar um contexto visual para estimular a formação de conceitos.
O mito da origem das Flores de Obaluaiê
Segundo conta o mito Iorubá, Obaluaiê é filho de Nanã e Oxalá, e nasceu com o corpo todo coberto de feridas. As chagas foram uma forma de castigo pela sedução que sua mãe fizera ao supremo orixá mesmo sabendo que ele era comprometido com Iemanjá.
Quando viu o recém-nascido com o corpo coberto de feridas, marcas e deformações, que poderiam ser de varíola, a orixá o rejeitou, abandonando-o em uma praia para que o mar desse fim àquele sofrimento.
Atraída pelo choro, Iemanjá encontrou a criança sendo devorada por crustáceos e quase morto, despertando-lhe o instinto materno. Muito comovida, ela o acolheu como filho, cuidando da sua saúde.
Porém, o jovem Obaluaiê ficou com o seu corpo todo marcado por inúmeras feridas e cicatrizes, que causavam muitos constrangimentos e o isolavam do convívio com os outros orixás.
Ogum, penalizado com a situação, cobriu o corpo dele com roupas e um capuz de palhas, que escondera também o rosto danificado pela doença.
Certa vez em uma festa dos Orixás, o seu comportamento arredio e isolado chamou a atenção de Iansã, deusa dos ventos e tempestades, que não contendo a curiosidade em saber quem se escondia debaixo das palhas, soprou os ventos fortes, revelando um jovem belo e viril com a pele marcada pelas cicatrizes que tanto o entristeciam. Encantada pelo jovem, resolveu tirá-lo para dançar e, em cada rodopio cortando o ar, as cicatrizes e feridas pulavam do seu corpo, sendo transformadas em pipocas, deixando-o reluzente de tanta luz e encantamento por tão rara beleza. O chão ficou todo coberto de pipocas parecidas com flores brancas, as Flores de Obaluaiê!
A arte enquanto expressão pessoal e expressão da cultura na obra de Miguel Veiga
Por Almir Valente 06/05/2022
Compreendemos que a arte representa um mundo onde o homem está presente de modo determinante – um mundo humano. Assim, na medida em que a arte tem como mediação o humano, é uma espécie de autoconsciência da humanidade através de seus vários momentos históricos. A arte entendida aqui como cultura, e cultura sendo “um reflexo ampliado do ‘eu’, um ‘grande espelho’ onde nós reconhecemos nossas identidades, e onde negociamos nossas dissonâncias”. (ORTHOF, p. 09, grifos do autor).
A obra de arte contemporânea do artista visual Miguel Veiga é uma arte que, ao se tornar uma presença na realidade torna-se esse reflexo ampliado do “eu, um grande espelho – que não somente reflete nossa imagem, pois é transitória, não há fixação, mas que nos faz refletir sobre nós mesmos a partir de nossa cultura. Através de sua arte como expressão pessoal, torna-se possível a visualização de quem somos, onde estamos e como sentimos; e como expressão da cultura, temos uma identificação cultural – capacita a não sermos estranhos em nosso próprio ambiente.
A relação entre essas duas formas de expressão (individual e cultural) da arte, nos conduz a uma temática transversal observada no conjunto da obra de Miguel Veiga, que é a sua abordagem sobre o ser humano, mas enfaticamente, sobre a humanidade e suas utopias, distopias e aporias. Frente às aporias de nossa atualidade vividas pela humanidade, na sua própria desumanização, em um mundo distópico, nos resta a acreditar em nossas utopias, na empatia com o outro, em uma verdadeira revolução ecológica e social e pela arte buscar a estesia do corpo frente à sua própria (an)estesia.
Abrangida desta forma, a obra de arte, embora seja um produto construído pela sensibilidade e para a sensibilidade humana, o que a diferencia de um utensílio é justamente o fato de ela sempre expressar algo além de seu objeto puramente material. As obras de Miguel Veiga extrapolam sua materialidade e trazem novos significados em sua produção de sentido. Por isso, a obra de arte, como expressão pessoal e expressão da cultura, pode ser compreendida como um Volksgeist (espírito de um povo) e um Zeitgeist (espírito de um tempo) (HEGEL, 1999, p. 43). E remetendo além do material e sua funcionalidade prática, a obra de arte pode se definir por seu significado. Assim, temos a apreensão estética ou estésica da obra Miguel Veiga que traz em seu texto visual a sua relação com o seu contexto.
A relação entre o texto e o contexto que se estabelece aumenta o campo de ação da arte contemporânea e produz novos sentidos nas obras de arte. Pelo viés da linguagem plástica da escultura, Rosalind Krauss, em Escultura no campo ampliado, analisa as produções artísticas entre os anos de 1969 a 1979, identificando-as como não pertencentes mais à categoria de escultura conforme a conhecemos, mas como detentora de uma lógica que lhe é característica. As obras de Miguel Veiga expostas no Centro Cultural do Ministério Público (CCMP) correspondem em termos de linguagem visual, a uma instalação composta de esculturas e pinturas, que vão além dos limites de suas próprias linguagens (campo ampliado). Quando nos referimos às pinturas de Miguel Veiga podemos também lhe atribuir novas nomenclaturas, que surgiram na arte no Século XX, ao que convencionamos chamar de objeto, como alternativa ao “espaço fictício” ou “figurado” da pintura para entendermos tais ampliações conceituais e experimentais: o papier collé (Cubismo), o ready-made (Dadaísmo), o objet trouvé (Surrealismo), as assemblages do Novo Realismo, etc.
A exposição se intitula Flores de Obaluaiê, e segundo o artista sua obra instalada pretende fazer, “uma correlação da rejeição e acolhimento vivido pelo orixá semelhantes aos problemas e mazelas enfrentados por humanos por questões de gênero, etnias e outros que metaforicamente são convertidos em superação como fez a divindade transformando suas feridas em pipocas de milho conhecidas como “flores de Obaluaiê”. Uma abordagem temática metafórica muito própria das questões tratadas pela arte contemporânea e pertinentes ao momento em que vivemos, que trazem a necessidade de (re)escrevermos e (re)significarmos nossa maneira de sentir e pensar o nosso mundo cultural humano, nos permitindo enquanto indivíduos analisar a realidade percebida e desenvolver a criatividade de maneira a mudarmos a realidade que foi analisada. Por fim acrescentaria, a força criativa e expressiva da obra produzida por Miguel Veiga em que a sua arte está entre aquelas que de forma sui generis atesta a transformação do mundo material em um mundo propriamente humano, em mundo-da-vida.
REFERÊNCIAS
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Cursos de estética. São Paulo: EDUSP, 1999. I.
GULLAR, Ferreira. Argumentação contra a morte da arte. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
ORTHOF, nº 42. Brasília: Editora UnB, p. 09. KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. 2012. Disponível em: <http://www.ppgav.eba.ufrj.br/wpcontent/uploads/2012/01/ae17_Rosalind_Krauss.pdf>. Acesso em: 01 de jul 2015.
Miguel Veiga
Miguel Estefanio Veiga Filho é artista visual em múltiplas expressões: Escultura, Pintura, Desenho, Instalações e Performances. É Mestre em Pedagogia Profissional (CEFET-MA / ISPETP – Havana/Cuba), Especialista em Educação Artística e Licenciado em Desenho e Artes Plásticas (UFMA). Tem várias premiações com seus trabalhos em Pintura, Escultura e Desenho.
Ficha Técnica
Criação e execução: Miguel Veiga
Colaboração em resinagem, marcenaria e montagem: Gustavo Sartorato -Benedito Segundo -Igor Madson
Apoio à montagem da exposição: Jodelmo Pereira -Ecleomar Martins -Davison Ferreira
Administração CCMP: Dulce Serra Moreira
Fotografias: Elizabeth Bezerra
Curadoria: Francisco Colombo