Exposição Delírios da quarentena, de João de Deus

Apresentação

A pandemia de Covid-19 chegou ao Maranhão em março de 2020. Antes disso, a doença já estava presente no imaginário da coletividade, por meio divulgação da imprensa e das redes sociais. Muitos chegaram a crer que era só uma “gripezinha”. À proporção que foi avançando, e isso foi muito rápido, fomos também percebendo a gravidade da situação, ao mesmo tempo em que continuávamos desorientados, sobretudo por informações desencontradas (às vezes propositalmente) de como proceder.

Fomos forçados a mudar o ponto de vista sobre certos temas. Diria até que amadurecemos em relação a várias questões, como talvez, e principalmente, em refletir sobre o nosso lugar neste mundo. Algumas atitudes se tornaram imperiosas: mais cuidado com a higiene, uso obrigatório de máscara de proteção, álcool em gel. Isolamento social, quarentena e lockdown foram definitivamente incorporadas aos vocabulários.

Todos sofreram em graus variáveis com a devastadora novidade. Mais que isso. Perdemos amigos, familiares, colegas de trabalho, conhecidos, pessoas que algum dia ouvimos falar, gente que admirávamos. De repente, filhos ficaram órfãos. Pais sem os filhos. Famílias desestruturadas. Não pudemos velar nossos mortos. Sensação terrível de que a morte estava (está) à espreita. Desespero. Mais de 500 mil vidas perdidas só no Brasil.

E o artista, este ser singular, como fica? Não saberei dizer de todos, mas o professor João de Deus aproveitou como podia para nos provocar, nos instigar. A voz contida pela angústia e o medo impregnaram telas com arte. Arte que nos ajudará a preservar a memória deste momento tão sombrio.

João de Deus mergulhou integralmente na produção artística. Foi uma defesa ante a solidão e a sensação de impotência. O que o artista nos oferece é, no fundo, por mais paradoxal que possa parecer, uma celebração da vida. A arte em João revela reminiscências tão profundas quanto difíceis de nominar, encravadas na alma e que antecedem a própria existência.
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As obras do professor João de Deus, em exposição nos Espaços de Artes Ilzé Cordeiro (Centro Cultural do Ministério Público) e Márcia Sandes (Procuradoria Geral de Justiça), compõem um grande conjunto, intitulado Delírios da quarentena, todas criadas em 2020. A exposição encerra um período de quase 20 anos sem pintar, quando João esteve inteiramente dedicado à carreira acadêmica.

Francisco Colombo / Curador

Espaço de Artes Ilzé Cordeiro – CCMP

Telas em Dor e Cor

O ar que falta sufoca os sentidos. A dor clama em imagens, desenhando e retratando saudades, encontros e despedidas. Sensação de impotência, de solidão, na luta, que deveria ser solidária, responsável.
Telas, em cores e sombras, expressam as vidas que sobreviveram e que se foram. Refletem amores perdidos, isolados; mostram o final que não tem fim na tristeza que insiste em permanecer.
A arte invade e fala em tons; em curvas e traços reflete o mundo emocional, real. Angústias e temores acentuam-se pela indiferença, pela omissão e ação de quem nega a ciência, de quem deixa morrer.
Um pouco do muito, que sangra o coração, deixa a alma e no seu imaginário mergulha no mar das telas, dos silêncios, dos olhares profundos, que repousam no que precisam ver. São mortes, em recortes, e vidas, que seguem órfãs de suas vidas, do colorido do tempo que lhes foi roubado e que teima em não passar.
A arte pincela as chagas da pandemia, de um vírus que se agigantou, que mora no tempo, passado e presente, em um futuro incerto; que habita no medo, na insegurança, em máscaras e vidas asfixiadas, tingidas por lágrimas e sofrimento.
Em exposição, nas impressões despertas, a luz incide nas telas pelo olhar de quem cria, recria e inspira. Luz que colore os sonhos de esperança, na fé de ultrapassar este tempo para outro tempo, sem tanta dor.

Ana Teresa Silva de Freitas / Promotora de Justiça

Espaço de Artes Márcia Sandes – PGJ

O imaginário metafísico na obra de João de Deus

Conheci João de Deus de forma mais próxima quando compartilhamos espaços de exposições no Departamento de Assuntos Culturais da Universidade Federal do Maranhão (DAC/UFMA). Ele recepcionava o público performaticamente com pedaços de bolo confeitado cortados e servidos com as próprias mãos. Mais do que um convite gastronômico, era um ato de uma subversão artística através dos sentidos.
Essa maneira subversiva de ver o óbvio foi levada para a vida acadêmica e o ajudou a quebrar muitos paradigmas através das suas “aulas performáticas”, verdadeiras obras de arte produzidas durante a docência, utilizando seus talentos musicais, cênicos e outras importantes ferramentas que vão caracterizar toda a sua vida de pesquisador que que se ocupou dos “imaginários”.
As performances de João com releituras de músicas e cantores importantes nos surpreendem, pois fogem à nossa expectativa óbvia da referência, de uma estética esperada. Sempre digo que a transgressão de seu trabalho segue o caminho de uma “estética imprevisível”, a desconstrução do esperado.
A sua expressão bidimensional com a pintura ou o desenho não foge a esta característica e nos remete às referências modernistas do fantástico surrealista Marc Chagal ou dos outros transgressores “fauvistas”.
Eu diria que os delírios não estão presentes só agora na quarentena, mas estiveram durante a vida toda de João, na superação das linguagens artísticas, na formação acadêmica, na vida pessoal e coletiva, na própria construção do seu imaginário enquanto pessoa.
As imagens que vemos agora em suas obras, não são só de um idoso em quarentena pois a arte não revela cronologias, mas, como ele próprio defende, são “imaginários”, que trazem em si, impregnação de sentimentos, emoções, histórias, que ultrapassam o território individual, pois eles são constituídos de signos, sinais ou códigos que traduzem o estado das almas da coletividade humana.
Não vislumbramos nas obras de João, um compromisso mercadológico, mas algo além da nossa expectativa consumista burguesa da obra de arte, talvez a concretização metafísica das angústias coletivas nos mostrando que o fazer artístico exorciza todo mal e de forma catártica renova e traz tranquilidade às almas tão angustiadas.
A apreciação da obra de João é uma provocação a um realinhamento de pensamentos e conceitos através da arte, das formas, composições com traços e cores utilizadas. O artista nos toca de maneira sensorial, nos tira da inércia do óbvio e nos conecta ao indecifrável momento coletivo que vivemos. São “mantras” de purificação provocados por um Xamã das artes visuais.

Miguel Veiga / Artista Plástico e Professor

Milhares

Somos milhares
Vidas mortas
Vidas prisioneiras
Na enfermidade
Na dor
No colapso pandêmico.
Lágrimas
Sombras e perplexidades
Pelo adeus sem despedida
Pelo tempo que não tivemos
Pelo que se foi de nós
Em pedaços
Sem ar e no ar, diluídos
Espalhados em números, na terra,
Sob a terra.
Somos milhares
Famílias
Pessoas
Sonhos frustrados
Destinos cortados, mutilados
Pela negação,
Pelo ar compartilhado
Pelas máscaras descartadas
Pela fome
Pelo medo
Pelo desprezo da ciência
E pela violência de ver morrer e
Morrer em vão.
Somos corpos
Somos almas
Com cicatrizes abertas
Dores e horizontes incertos
Vidas sentidas, sofridas
Que esperam enfim
O Encontro
O Abraço fraterno, solidário
Consciente da vida e das vidas
Milhares que a pandemia levou.

Ana Teresa Silva de Freitas / Promotora de Justiça

O artista João de Deus

João de Deus Vieira Barros nasceu em São José de Ribamar no dia 8 de março de 1957, dia de São João de Deus, derivando daí seu nome. Estreou nas artes visuais em 1995.
É professor titular aposentado da Universidade Federal do Maranhão. Atualmente é o gestor do Centro de Cultura de São José de Ribamar.

1 thought on “Exposição Delírios da quarentena, de João de Deus

  1. João e sua arte. João se humaniza na arte. João nos humaniza com a sua arte. Obrigada João, por esse trabalho com esse trabalho sensível e amoroso, com traços, cores e texturas que afaga nossos corações sofridos em tempos pandemicos. Estar viva e poder contemplar e admirar a sua arte faz de mim uma pessoa mais feliz. Obrigada por esse passeio pelas telas e pelas telas do querido João.

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